LIVRO VÊ “TODOS CONTRA TODOS” EM PLANOS DE SAÚDE
Fonte: Agência Estado
Responsáveis pela saúde de 50 milhões de brasileiros, as operadoras de saúde dão sinais de que são elas que não andam saudáveis. O aumento crescente de custos pode tornar o sistema de saúde suplementar insolvente. E foi esse diagnóstico que fez com que os médicos Drauzio Varella e Mauricio Ceschin, presidente da administradora de benefícios Qualicorp e ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar, se unissem para escrever o livro A Saúde dos Planos de Saúde, que será lançado nesta segunda-feira, 24. Na publicação, eles defendem novos modelos de gestão, que acabem com a cultura do “todos contra todos” e com o desperdício de recursos, e propõem mudanças como a coparticipação do usuário no custeio e a classificação dos beneficiários conforme grupos de risco. Ao Estado, eles detalham as propostas.
Qual é o cenário da saúde suplementar hoje?
Varella: Para mim, o que sempre chamou a atenção é que estão todos contra todos. Os planos de saúde estão contra os usuários porque os usuários acham que o plano tem obrigação de pagar tudo o que for pedido. Quando o contrato não dá direito a determinado serviço, ele vai à Justiça e ela manda fazer. Já os planos de saúde estão contra os médicos porque eles pedem exames demais e atendem os doentes correndo. Os usuários, por sua vez, estão contra os médicos, que atendem depressa demais e estão contra os planos porque pagam mensalidade e, quando ele vai usar, é glosado ou demora muito para ter o serviço de volta. E os médicos estão contra todo mundo porque acham que são explorados e não dão conta de atender o doente também. Então, com um sistema desses, alguma coisa está err ada aí, né? Ou muitas coisas estão erradas.
Do ponto de vista dos médicos, quais são os piores problemas?
Varella: A má remuneração. O médico acha que ganha pouco e quer compensar no volume de pacientes. Como você faz se tem de atender uma pessoa depressa e não quer dar a impressão de que atendeu mal? Você pede exame! Os planos de saúde dizem que os médicos pedem exame demais. E é demais mesmo: 30% dos exames de imagem da Amil os pacientes não vão buscar. E olha o que aconteceu: nos últimos 20 anos, os laboratórios que eram empresas pequenas viraram monstros. Esse é o grande negócio da medicina hoje.
E para o paciente fica a impressão de que o médico é bom porque pediu check-up completo…
Ceschin: Nós deslocamos a segurança do paciente para a tecnologia em vez do atendimento médico e hoje a gente paga o preço disso. Você tem uma superprodução de exames e de procedimentos que virou fonte de receita para o sistema.
O Drauzio Varella falou do ponto de vista médico e do ponto de vista do consumidor. E do ponto de vista de gestão? Qual é a maior sangria?
Ceschin: A gestão que existe no sistema é basicamente discutir tabelas de remuneração, tentando diminuir ao máximo os aumentos de custos e repassar isso para o cliente. E, na hora que você repassa, os reajustes tendem a ser crescentes, porque a utilização é crescente, pela mudança epidemiológica, pelo envelhecimento da população, pelo maior acesso à tecnologia. A tendência dessa equação é não fechar. Não existe uma bala de prata para resolver isso. São várias medidas que vão trazer a solução. Um modelo em que você paga o plano e que vai crescendo por faixa etária, em uma população que vai triplicar o número de idosos nos próximos 20 anos, não é sustentável. Hoje, um hospital eficiente aqui no Brasil não se sustenta. Ele tem de produzir consumo de materiais, medi camentos e equipamentos, para criar margem. A maioria dos hospitais no Brasil ganha dinheiro no almoxarifado. Então, a lógica de remuneração tem de inverter. Nos países desenvolvidos, é feita por pacotes fixos, com valores atrelados a diretrizes clínicas já especificadas. O que eu digo é: o indutor do sistema deveria ser a eficiência, mas é o consumo.
No que as operadoras pecam?
Ceschin: O que vejo é que muitas operadoras continuam olhando isso como uma operação financeira e isso é uma prestação de serviço, que tem de ter foco no cliente. Quem é que no Brasil hoje se sente acolhido pelo seu plano de saúde? Eu tenho de ir até ele, tenho de promover o cuidado, tenho de saber em que estágio ele está, como está cuidando da saúde, tenho de ser pró-ativo.
O senhor acha que o desperdício é o principal fator de pressão do custo dos planos de saúde?
Ceschin: Não. Acho que a ausência de uma política de gestão assistencial é um grande problema. Gestão assistencial é: controle de desperdício, mudança de modelo de remuneração, indicadores de qualidade para você fazer avaliação comparativa e movimentar todo o sistema para buscar melhor qualidade, você corresponsabilizar o consumidor. Nós defendemos que os planos devem custar um pouco menos, 15%, 20% menos, e uma parcela disso o usuário paga um pouquinho toda vez que ele utiliza. Isso traz uma consciência, do usuário e do médico. Porque o médico também, sabendo que o usuário está pagando, só vai pedir o necessário.
Varella: Nunca encontro ninguém que diga que a margem de lucro dos planos é menor do que 50%. Eles acham que é um grande negócio, onde as operadoras ganham muito dinheiro, em uma visão distorcida.
E qual é a média dessa margem?
Ceschin: 2% a 3%. Nesse último trimestre, se você olhar o caderno de informações da ANS, que publica isso, a margem está abaixo de 2%.
Em um setor em que todos estão contra todos, o que pode ser feito pela ANS?
Ceschin: No caso do médico, quando você incorpora novos procedimentos no sistema de saúde, vem atrelado a uma diretriz clínica. É óbvio que vão ter exceções, é óbvio que tem pacientes que fogem da regra, mas é preciso começar a utilizar as diretrizes clínicas que são universais para balizar e comparar a conduta médica.
Institutos de defesa do consumidor dizem que os planos ficam presos a uma regra e negam cobertura porque sabem que a maioria dos beneficiários ou não sabe que tem direito de entrar na Justiça ou não tem recurso para isso.
Ceschin: A gente criou um ciclo vicioso que uma atitude errada gera outra, que gera outra, e assim por diante. Ou a gente quebra esse ciclo, ou não saímos dele. Precisamos repactuar um novo acerto para buscar um novo modelo.
Tem por onde começar? Na Qualicorp, o que senhor está fazendo?
Ceschin: Toda a minha grade de produtos neste ano, por exemplo, estamos montando com coparticipação. Estamos ainda criando base de dados para ter produtos e serviços de gestão de saúde, de prevenção, de promoção, de acompanhamento. Como eu tenho a base de dados das operadoras, a gente consegue identificar os portadores da patologia, os doentes crônicos e acompanhá-los. Você tem de olhar os perfis de risco e atuar antes que eles fiquem doentes.
Varella: Acho que há uma outra questão que pode ser potencializada que é a responsabilidade de cada um sobre a própria saúde. Tem cabimento eu, com 70 anos de idade, correr maratona e pagar a mesma coisa do que um gordo, fumante, que come tudo que dão a ele, que não toma o menor cuidado, que não faz revisões, está certo isso? Você bate o carro dez vezes e o outro não bate nenhuma, eles dão um desconto para o outro. Por que não existe isso na saúde? É uma forma de você cobrar das pessoas que elas sejam responsáveis pela própria saúde.
O que dizer aos consumidores para explicar que esse modelo não é sustentável?
Varella: A primeira coisa é que isso vai quebrar, que esse sistema não vai se manter. A população está ficando mais velha, os novos recursos, as novas tecnologias vão sendo incorporadas à medicina. O custo dos remédios hoje é absurdo. Em oncologia, os novos remédios custam no mínimo R$ 8 mil cada um por mês. Se não fossem os planos, não existia.
Ceschin: É para preservar isso que o modelo precisa mudar. É preciso desatrelar essa visão de que quanto mais procedimentos eu faço melhor é o cuidado que eu recebo. Perceber que isso não agrega valor e desemboca só em aumento de custo desnecessário e todo mundo vai pagar a conta.